Resenhas

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Terra Alta

Resenha por Renato Casimiro
Ano da Publicação 2021
Autores:
Javier Cercas.
Editora:
Tusquets Editores.

 

Não sou leitor assíduo de romance policial, dos poucos que li e gostei, dizem os verdadeiros leitores do gênero que não é propriamente romance policial. Terra Alta (2021) de Javier Cercas tem um crime, tem um policial, tem mistério, mas não é bem um romance policial – suspeito.

Uma pacata cidade da Terra Alta, na Catalunha, é abalada por um triplo homicídio. “Melchor está em seu gabinete, cozinhando no fogo baixo de sua impaciência para terminar o período da noite, quando telefone toca”. Ele está em Terra Alta há quatro anos, vindo de Barcelona. Custou a se acostumar com a calmaria do lugar, combatia a insônia com soníferos e romances. Agora se sentia outro. Mas quem é esse homem? Qual a razão de sua transferência de Barcelona para um lugar esquecido? De que passado estaria se refugiando? Assim como Jean Valijean, protagonista de seu romance predileto – Os miseráveis – sua vida é cercada de mistérios. Teria ele conseguido se tornar um Senhor Madeleine como no livro de Vitor Hugo?

Não é minha intenção antecipar os acontecimentos, o que até aqui foi dito qualquer leitor poderá perceber nas duas primeiras páginas de Terra Alta. Melchor é um leitor, a literatura o acompanha, desde que a descobriu. Ou foi ela que o encontrou? Não importa, o que posso adiantar é que, intercalando os capítulos sobre a investigação e seus contornos, Javier Cercas constrói o passado de seu protagonista, envolvendo o leitor numa trama que, por um lado, quer saber da resolução de um crime bárbaro e, de outro, quer decifrar um personagem que vai se mostrar mais complexo do que se supõe ser um policial de província.

Além disso, é de se esperar que um autor considerado por Vargas Llosa um dos melhores da literatura hispânica traga outras questões a desfiar nossa sensibilidade e inteligência. Por conta disso, é bom que o leitor permaneça atento. A tecitura de Javier Cercas é uma armadilha que pretende seduzir o leitor com a finalidade de “provocar as consciências anestesiadas” – como bem alguém já falou. Javier Cercas também parece querer nos fazer perceber que é preciso respeitar certos limites, por exemplo, os da justiça, seu tempo e seus ritos e suas fronteiras com o ressentimento, a vingança, a desforra ou o simples desejo de se tornar um paladino.

Terra Alta é também um livro que se propõe a refletir sobre a possibilidade de ser justo e a legitimidade da vingança. Há as convicções atávicas contra as quais não há argumentos, fora isso, sempre pode existir um espaço para pensar: não que o imperdoável deva ser esquecido, apagado, obliterado, mas pode-se ter em conta os limites de repristinar o passado, o já acontecido, mais ainda, de saber das consequências, dos desdobramentos de nossos gestos justos ou de simples desforra; exorcismo da dor, da decepção, da perfídia.

Terra Alta diz desses limites, da angústia de saber de toda limitação, mas é antes um livro com várias possíveis chaves de leitura. Aqueles que tiveram a oportunidade de ler Os miseráveis poderão encontrar alguma similaridade: a epopeia de um homem em busca de si, do tempo perdido e do seu lugar no mundo. Sem dúvida há, no mínimo alguma inspiração no romance de Vitor Hugo. Seria Melchor uma reaparição de Jean Valijean? Ou do seu perseguidor, o policial Jevret que achava mais fácil ser bondoso do que ser justo? Teria Javier Cercas mixado estes dois personagens para criar o seu Melchor? Em certa medida, um ou outro personagem de um parecem ressurgir no outro, com uma nova roupagem, certamente, outras tintas: sem tantos excessos e com suas contradições, menos arquetípicos, mais humanos.

Não se acanhe, contudo, o leitor, se acaso queira em Terra Alta um típico romance policial. Há nele tensão e suspense, uma história muito bem contada que cria a necessária ânsia de se saber o que vai acontecer: Quem, como e o porquê, indagações que alimentam todo processo investigativo, para determinar uma verdade; ou uma versão, uma história bem contada, convincente ou mesmo uma mentira que convém, uma farsa. Não é coisa fácil distinguir o fato do factível, do verossímil, da verossimilhança que “muita vez é toda a verdade” – disso certo Casmurro não me deixa esquecer. Afinal, disso vivemos, nós e a literatura, esse apanhado de histórias que nos ajudam a suportar a vida verdadeira.

Mesmo ela, a literatura – a imaginação, o sonho, o delírio, a ficção – tem seus limites. O leitor julga poder encontrar nela, se não um refúgio, um conforto, uma experiência capaz de fazê-lo compreender suas dores e seus afetos e muitas vezes encontra somente – Melchor sabe bem – mais do que estímulo, necessidade de imaginar ou de sonhar, quando não, de lembrar – que é outra forma de esquecimento – ou pior, de pensar, que pode ser como um delírio.

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