Resenha por Renato Casimiro
Ano da Publicação 2019
Autores:
Olga Tokarczuk.
Editora:
Todavia.
Ainda o romance policial. “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la” é o que nos ensina Carlo Ginzburg. O historiador nos ensina que este seria um patrimônio cognoscitivo herdado dos primeiros caçadores que a milênios aprendeu a reconstruir as formas e os movimentos das presas invisíveis, farejando, registrando, interpretando seus rastros – pegadas, excrementos, pelos, odores. Um saber venatório do qual herdamos ainda, entre outras, a capacidade de narrar a partir de fatos aparentemente insignificantes (pistas, indícios), coisas miúdas, muitas vezes imperceptíveis aos grandes olhos.
Foi em torno desse saber venatório que se consagram os primeiros personagens investigadores que logo fariam a alegria dos leitores. Auguste Dupin – protagonista de Edgar Allan Poe em Os assassinatos da Rua Morgue – serviu de modelo e inspiração para muitos outros. Para Dupin, a função do investigador é destrinchar enredos, algo que lhe dá grande prazer: “Em silêncio, faz ele uma série enorme de observações e inferências. [e a] extensão das informações obtidas não se encontra tanto na validade da dedução como na qualidade da observação”.
O sucesso alcançado por Dupin e seus herdeiros acabou por criar um novo gênero – o romance policial, de intriga ou de investigação – e, com ele, uma fórmula utilizada por diversos autores, basta citar um dos mais famosos, Conan Doyle e seu Sherlock Holmes. Sobre este gênero, esclarece o mestre Tzvetan Todorov: “O romance policial tem suas normas; fazer melhor do que elas pedem é ao mesmo tempo fazer pior: quem quer embelezar o romance policial faz literatura, não romance policial”, fornecendo argumentos para a má vontade de certos leitores que consideram o romance policial algo menor, voltado para o mero entretenimento do vulgo.
Assim, estabelecidas as normas, uma fórmula a serem seguidas à risca, escritores que se aventuravam no gênero se tornaram obedientes, uns mais outros menos. Diz a regra que não se deve discutir problemas amorosos, pois isto tiraria o foco da questão central, o crime. Desta resulta outra, a necessidade de, pelo menos, um cadáver. Aspecto fundamental: o investigador deve considerar elementos estritamente realistas, nada de apelos ao sobrenatural ou construções inverossímeis. Importante também é o perfil do culpado – esta é uma norma ética e didática – a indignação do leitor se concentre neste personagem, sobretudo se for dotada de maldade inquestionável e de uma moralidade avessa aos valores sociais. Por último, deve-se destacar o aspecto urbano, quanto maior a cidade, maiores os crimes e mais diversificados os criminosos.
Estas são características gerais, há outras, destaco estas, para dizer de Sobre Os Ossos dos Mortos, uma narrativa com ares de romance policial que contraria o Vade Mecum do gênero. Para começar toda a trama se passa longe das grandes cidades, num vilarejo nos confins da Polônia, perto da fronteira com a República Tcheca. O primeiro cadáver é de um caçador, conhecido por caçar inclusive ilegalmente e tudo indica que a causa da morte foi um engasgo com osso de uma corça. Outro desvio da norma: a protagonista, a Senhora Janaína Dusheiko suspeita que a morte de Pé Grande foi vingança dos animais, tornando-se uma certeza à medida que outros mortos de causas pouco convencionais aparecem – todos membros de um clube de caçadores.
A autora deste romance policial com ares de fábula filosófica é a polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2018. E não tenho dúvidas que seu livro é literatura e das melhores. Há cadáveres e uma investigação, mas há outras questões, nãos só sobre astros ou sobre o poeta inglês, mas sobre a vida, algumas doses de amor, outras muitas ambientalismo e a crença do ser humano de se entender superior à natureza (justificativa à matança de animais) ou sua decepção com certo tipo de indivíduos do mundo masculino:
A partir de certa idade, certos homens desenvolvem autismo de testosterona, que se manifesta lentamente como uma deficiência de inteligência social e da habilidade de comunicação interpessoal que compromete a formulação de ideias. Um ser humano atacado por essa moléstia torna-se taciturno e parece imerso em seus pensamentos. Mostra-se mais interessado nas diferentes ferramentas e maquinarias. Sente-se atraído pela segunda Guerra Mundial e por biografias de pessoas famosas, geralmente de políticos e malfeitores. Sua capacidade de ler romances desaparece quase por completo, pois o autismo de testosterona interfere no seu entendimento psicológico dos personagens” (p. 28).
Janaína é defensora dos animais, acostumada a desarmar armadilhas feitas para aprisionar animais silvestres. Ela tenta convencer os responsáveis pela investigação, mas não é ouvida. Seu interesse pela poesia de William Blake e, sobretudo, pela astrologia faz com que seja vista como uma pessoa excêntrica, não merecedora de crédito. Ao aparecer outros cadáveres de outros conhecidos caçadores, todos mortos de forma estranha, a Senhora Dusheiko reforça a certeza de que os estão se vingando pelas caçadas.
Certamente o leitor afeito ao romance policial e que não cobra do artista o cumprimento de regras encontrará neste livro seu momento de prazer. Também o leitor que se pretende exigente e que cobra do escritor um compromisso com a arte perceberá que Olga Tokarczuk escreve Literatura. Aliás, Janaína Dusheiko, em um de seus devaneios, nos diz do hábito de classificar e hierarquizar pessoas, bichos e todas as coisas. É longo o excerto, mas não resisti:
Mas por que, então, deveríamos ser úteis? E para quem? Quem dividiu o mundo em útil e inútil, e quem lhe deu o direito de fazê-lo? Desse modo o cardo não teria direito de viver, nem um rato que devora os grãos nos armazéns, nem sequer as abelhas ou os zangões, as ervs daninhas ou as rosas. Quem foi o dono da mente que se atreveu a tanta arrogância para julgar quem é melhor ou pior? ma árvore enorme, torta e cheia de buracos sobreviveu por vários séculos sem ser derrubada, porque não se podia fazer nada com ela. Esse exemplo deveria animar pessoas como nós. Todos conhecem o benefício do útil, mas ninguém conhece o proveito do inútil.
Falando ao El País (12/08/2020), Olga Tokarczuk nos faz supor que a literatura seria uma dessas inutilidades, algo que um grande número de pessoas desconhece o proveito: “Palavras ditas ou assinadas por um escritor são muito menos relevantes do que as decisões dos economistas e políticos, as importantes descobertas científicas ou os novos medicamentos”. A literatura seria algo de pouca utilidade, teria se tornado algo para poucos privilegiados. Contribuindo, para isso, acrescente-se que a literatura permanece inacessível para uma significativa parcela da população: “Nem nas remotas estepes da Ásia nem nos bairros pobres das grandes cidades africanas ou americanas se lê literatura agora” – conclui.
De fato, é um privilégio conhecer os proveitos da literatura e poder ler Sobre Os Ossos dos Mortos, originalmente publicado em 2009 e lançado no Brasil em 2019 pela Editora Todavia, com tradução de Olga Bagińska-Shinzato. Não é livro para se ler com pressa. Como escrito em El País, “Há autores fáceis que nos dão tudo mastigado. E há os mais difíceis, mais desafiadores, que nos fazem trabalhar, mas ressalva. “Tokarczuk nos entrega a pá e nos ensina a cavar”. Ainda que a leitura de histórias inventadas seja uma inutilidade, em retribuição a este privilégio, devemos fazê-lo com sensibilidade e inteligência para cavar e não desperdiçar as preciosidades que Olga Tokarczuk nos reserva.