Resenha por Renato Casimiro
Ano da Publicação 2022
Autores:
Alice Casimiro Lopes.
Editora:
Editora Oito e Meio.
Sobre novos autores
É prazeroso acompanhar o amadurecimento de quem escreve. Não digo dos primeiros passos, ou quando ainda de gatinhas ou antes. Esses momentos são sempre solitários, repletos de rabiscos, rasuras e rascunhos, até que se acredita, ainda que sem alarde, em segredo, às escondidas ter algo digno de ser lido. Muitos não vão adiante e se deixam ficar num limbo, mas se há insistência, chega-se a um momento decisivo: a confissão de autoria do que pode ser um crime. Não importa se por coragem, ousadia ou convicção, toda coisa escrita precisa ser entregue à leitura alheia, ou seu destino será a lixeira, a gaveta ou um HD repleto de entulho.
Gosto de ler autores debutantes e, depois, aguardar um provável segundo título. Neste caso, não costumo ser exigente, apesar de não ser raro que um autor ofereça o melhor de si ao primeiro rebento. Muitos são os que não prosperam, mas dos que persistem, é razoável contar, ainda que possam perder a espontaneidade e o entusiasmo, que com o tempo, sua escrita adquira maior densidade, complexidade e fluidez.
Digo isso, para dizer do livro de Alice Casimiro Lopes, Vidas sem margens. Um livro de contos, opção de muitos dos que se iniciam no ofício sem fim da escrita. Pessoalmente, acho um grande risco, pois pequenas imperfeições, num romance, podem passar desapercebido, ao passo que no conto, um simples peixe de aquário é um cetáceo gigante que salta ofegante à superfície. Melhor disse Cortázar, para quem, como numa luta de boxe, no romance, o leitor pode ser vencido por pontos, mas no conto, necessariamente ele deve ir a nocaute. Alice aprendeu bem a lição do mestre e entrega aos leitores uma escrita que flui sobre temas que, quando do cotidiano, aponta o que é próprio, íntimo, exclusivo; se do transcendente, do universal, do incompreensível, enfim, do áspero, incluem o que tem de riso, de singelo, de humano.
Alice não recusa os desafios da escrita e sabe que “há um descompasso de quem tenta escrever sobre o negado, o não sabido reconhecido ao longo dos anos” (p. 136). Para enfrentá-los, além de leitora experiente, ela se nutre do vivido, do lembrado, do tempo, “essa divindade que completa espaços vazios do saber e do sentir” (idem). O repertório de Alice é vasto. Como não dizer do amor, dos encontros e desencontros, do que se achou e do que se perdeu? Por exemplo o casal de namorados “inventados por palavras que nunca foram minhas” (p. 57). Ou Anísio que “cuidava com carinho da conservação da estrutura de Lorelai, tudo era pouco para garantir sua longa vida” (p. 84). Também as dores menos nobres interessam a autora, dores que insistem, se repetem, como as de Guiomar que “Das seis às dez segue ativa acompanhando o caminho dessa dor” (p.106).
Vidas sem margens é um mosaico, nele o leitor encontrará vozes diversas, ora no domínio do fantástico ou do insólito e algum realismo, ora no campo da metalinguagem ou da experimentação. A autora possui plena consciência e domínio do que escreve, permitindo que múltiplas e variadas personagens adquiram forma e existência, pois “sendo outras, sou mais eu” (p.138) e, ainda assim, ninguém “nunca vai saber o porquê de tudo que escrevo” (p.160), como supõem aquele que narra em primeira ou em terceira pessoa. Por tudo isso, Vidas sem margem é para ser lido sem pressa, aos poucos, em pequenos goles, com quem caminha apreciando a paisagem, seus detalhes, um pedaço de papel brilhante assentado no meio fio. Assim, também eu “Talvez nem saiba por que escrevo tudo isso” e concordo que. “Bom mesmo é andar por aí” (p. 117), mas acrescento, é ainda melhor ler essas vidas sem margem, por aí, à toa.